quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Nota de Falecimento

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Morre hoje, em definitivo, neste improvável dia 29 de fevereiro, tanto no espaço virtual, como no imaginário das pessoas, o escritor Lehgau-Z Qarvalho. O heterônimo foi utilizado por longos 21 anos. Lehgau-Z deixa um legado público pequeno, mais por falta de verbas do que por vontade de vencer.

O escritor teve, no início deste ano, um momento catártico à beira do mar, em uma pequena e paradisíaca praia de Santa Catarina, seguido de uma epifania. Escreveu ali mesmo a sua “carta testamento” e decidiu seguir viagem. “Porque, ao contrário do que se possa conceber na grande maioria das vezes, morrer é retornar às origens para uma nova fase de avaliação da própria vida. Além do que, conforme Fernando Pessoa, ‘morrer é só não ser visto’”, escreveu Lehgau-Z em seu texto final.

Em “A Teoria das Sombras”, seu único romance, o autor descreve, antecipadamente e, conforme ele, “ainda sem a mínima consciência das coisas”, o que estava por lhe acontecer cinco anos depois. O romance, belamente prefaciado pelo escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, teve pouca aceitação, salvo raras e excelentes exceções, por parte do público leitor. “Acredito que não tenha sido bem compreendido em A Teoria das Sombras, já que tive de explicá-lo inúmeras vezes. Recebi relatos de pessoas que chegaram ao ponto de parar de lê-lo, ainda no início, por verdadeira ojeriza aos fatos ali narrados”, comentou o autor em conversas muito antes da sua partida. O romance narra a história de um homem (Jotapê – em alusão a Jean-Paul Sartre) em busca de mudanças internas, para chegar a elevados graus nas escalas do autoconhecimento.

No início do livro, Lehgau-Z tenta situar o leitor, dando as suas referências literárias, em meio a uma “cena de conversão”. Lehgau-Z cita, além de Sartre e Simone de Beauvoir (nomes emprestados ao casal protagonista da história), escritores “malditos” como Charles Bukowski, Henry Miller, Edgar Allan Poe, Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues, Hilda Hilst, Jack Kerouac, Caio Fernando Abreu, John Fante e João Gilberto Noll.

Em sua “carta testamento”, Lehgau-Z  Qarvalho se diz incomodado pelo fato de seu nome ter tido aceitação apenas pelas crianças, e ter sido sempre motivo de chacota, nem sempre explicitamente, por parte dos adultos. "O escárnio é a única ferramenta do ignorante", diz o escritor. O que, de acordo com ele, “é compreensível, já que para o senso comum é mais fácil menosprezar do que tentar entender qualquer possibilidade de saída da sua zona de conforto. O que, de fato, tristemente só empurra a mágica sabedoria humana para o ostracismo e a barbárie”. O escritor comenta também sobre a hipocrisia do mercado editorial do sul do país, com suas limitações de idade, religião e preferências sexuais, jamais explicitadas. E diz ter sido, ao longo da vida, uma pessoa como qualquer outra, apesar de um heterônimo.

Lehgau-Z jamais se casou ou teve filhos; muito menos amigos. Foi um solitário convicto e um iconoclasta lírico das entrelinhas. Um “gentleman” capaz de assassinar barbaramente pessoas e ideias dentro de si mesmo, mas tratar a todos com invariável cordialidade. Ao longo dos anos em que existiu, foi um entusiasta da mudança de postura e do pensamento, e um amante incondicional das artes; em especial as marginais. Arraigado adepto do “faça você mesmo”, criou e incentivou diversos projetos, ainda que infrutíferos, desse teor. Lehgau-Z Qarvalho fez música, literatura, histórias em quadrinhos, poesia, jornalismo, ficção virtual, humor, fanzines e artes visuais em geral. Tudo no mais puro estilo “indie”. Tudo com o mínimo grau de sucesso perante o público.

Conforme o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, mestre e amigo do autor, e que escreveu o prefácio de A teoria das Sombras, “(...) o autor não começou hoje, (...) tem muitos anos de estrada. Isso você vê pelo texto, sim, mas também pelas múltiplas alusões culturais espalhadas aqui e ali. Muitos tentam fazer isso e acabam numa deplorável colagem sem algum sentido”. E, ainda, sobre a obra, Assis Brasil diz: “se trata de um livro muitíssimo bem escrito. Nada falta, nada sobra, é um texto impecável que, embora se mantendo simples, é dotado de uma excepcional sofisticação, revelada pela frase bem construída, pelo léxico preciso, por algumas imagens raras e poéticas”.

Bem, fato é que Lehgau-Z Qarvalho se foi. E o dia da morte dele não poderia ter sido outro: 29 de fevereiro – um dia que, ao longo de um período de quatro anos, só existe no imaginário das pessoas; e quando reaparece, serve, um pouco para atrapalhar o andamento corriqueiro das coisas, um pouco para empurrar os dias para frente; e foi criado tão somente para “equilibrar” o calendário.




Estilhaços do Autor
Onde encontrar pedaços de Lehgau-Z Qarvalho espalhados por aí:


*Pintura Sônica – Música (CD) – 2007 – Produção Independente – Esgotado


*Coleção Gibicróbio (Passocídio Suicional, MosquE.T., Rômulo e Suas Duas Cabeças)
– HQ, mini-comics – 2010 – BIFE editorial – www.bife-editorial.blogspot.com

*Samba Triste – Música (single) – 2010 – Produção Independente – http://br.myspace.com/lehgau-z

*Halvin e Caroldo – HQ – 2011 – BIFE editorial – www.bife-editorial.blogspot.com

*Lori-val e Suru-jel – Projeto em HQ – www.lori-jel.blogspot.com

*KHzine – Fanzine Virtual – www.khzine.blogspot.com

*Clayton, o cominho – Projeto Experimental –  www.claytonocominho.blogspot.com



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